Desde pequeno, Caio era um menino doce. Carinhoso, atento, daqueles que preferem a companhia da mãe aos brinquedos caros. Brincavam juntos, estudavam lado a lado, compartilhavam segredos como cúmplices. E mesmo agora, adolescente, a conexão resistia. Apesar dos vícios modernos – videogames, celular, redes sociais – ele procurava a mãe para tudo. Era com ela que desabafava, ria, pedia conselhos.
Não à toa, era querido por todos: amigos, professores, vizinhos. E, principalmente, pelas famílias dos colegas, que sempre elogiavam sua educação e sensibilidade. Por isso, quando surgiram acusações contra ele – de bullying, de assédio – a mãe recusou-se a acreditar. Não podia. Era impossível.
Tudo começou com um acidente: uma estagiária da empresa em que ambos trabalhavam – mãe e filho – foi empurrada escada abaixo. Sem câmeras no local e sem testemunhas, o clima pesou. O ambiente ficou tóxico, cheio de sussurros e olhares tortos.
Pouco tempo depois, uma colega começou a ignorar Caio. Boicotava suas tarefas, espalhava que ele era o responsável pela queda. O boato virou sentença: ninguém mais o respeitava. A mãe, revoltada, assistia tudo em silêncio – até não aguentar mais.
Num rompante, entrou na sala do chefe e pediu demissão. Disse que era inaceitável o que estavam fazendo com seu filho, que ele era bom, incapaz de ferir alguém. O chefe relutou – ela era uma funcionária valiosa –, mas aceitou.
Na saída, a acusadora a abordou. Estava estranhamente calma. Pediu desculpas e mostrou um vídeo. Nele, Caio aparecia no depósito, tentando agarrá-la. Após a recusa, ele empurrou caixas sobre ela, com violência fria.
— Não posso provar que ele empurrou a Elisa… Mas o que fez comigo mostra que é possível. Me perdoa se te ofendi, mas não dá mais pra fingir.
A mãe assistiu em silêncio. Seu coração queria negar, mas a imagem era clara. Ainda assim, não podia aceitar. “Meu filho é bom. Deve haver alguma explicação.”
Largaram tudo e foram para o litoral. Uma pausa. Um recomeço. Alugaram dois quartos em um hotel simples à beira-mar. À noite, ela ouviu barulhos vindos do quarto ao lado. Entrou pelo acesso interno e congelou: o lugar estava destruído. Caio, com os olhos vidrados, murmurava palavras desconexas. A voz era dele – mas não era. O jeito de olhar, a postura, tudo era estranho. Pela primeira vez, ela teve medo do próprio filho.
Minutos depois, ele bateu à porta. Era Caio novamente. Chorava. Não lembrava de nada.
As cenas se repetiram. Vez ou outra, ele sumia dentro de si. Voltava diferente. Agressivo. Incontrolável. Um diagnóstico veio como um soco: Transtorno Dissociativo de Identidade.
Ela não sabia o que fazer. As férias se tornaram permanentes. A vida, uma espera pela próxima troca de personalidade. Caio, em seus momentos de lucidez, implorava perdão. Sentia culpa, dor real. Foi ele quem sugeriu:
— Quando eu mudar… me apaga. Não me mata. Só até eu apagar. Talvez, se ele morrer, nunca mais volte.
Ela relutou. Mas topou.
Naquela manhã, estavam na praia. Faziam castelos de areia, como nos tempos em que ele era só um menino. De repente, sem aviso, ele chutou tudo. Riu. Era ele. A sombra.
Ela disfarçou o pânico.
— Vamos até o mar?
Ele topou. Entraram juntos, com a água subindo até o peito. Ela o abraçou. Forte. E mergulhou com ele, com força. Segurou-o lá embaixo, enquanto ele lutava, chutava, arranhava. E só soltou quando o corpo parou de se debater.
Com desespero, trouxe-o de volta à superfície. Na areia, iniciou manobras de ressuscitação. Foram minutos intermináveis até que ele tossiu e abriu os olhos. Estava de volta. Ela chorou. Tinha funcionado.
Ou assim pensava.
Naquela noite, ele a observava do canto do quarto, olhos abertos demais, sorriso calmo demais. A voz, baixa como uma prece:
— Agora… sou só eu.
E ela soube. O que havia dentro dele não morrera.
Apenas venceu.