Arraial de Dentro é o tipo de lugar que o mapa esqueceu. Interior do interior, como dizem. Os ônibus passam só duas vezes ao dia, as padarias fecham ao meio-dia aos domingos e o bar da esquina também é a farmácia — dependendo da hora. Vivem ali menos de cinco mil almas, e todo mundo sabe quando uma delas vai embora, adoece ou troca de carro.

Santa Graça, a cidade vizinha, é nossa metrópole. Cinquenta mil habitantes, dois hospitais e um shopping que não merece esse nome, mas onde as adolescentes sonham em trabalhar um dia. Quando alguém diz “vou pra cidade”, não é Arraial que está no horizonte. É Santa Graça.

Naquele final de semana, Arraial estava em festa. O tradicional Festival de Música Popular tomava conta da praça, da escola, dos lotes abandonados, das conversas. Eram três noites de som alto, cerveja quente e filas longas. Eu não comprei o passaporte. Prefiro sentir o dia. Ver se o humor ajuda. E naquele domingo, último dia do festival, não queria ficar em casa. Meu marido e meu filho iam até Santa Graça, cada um com seus compromissos. Pedi uma carona até o festival. Eles me deixariam no caminho.

A estrutura montada para os shows ficava num terreno vasto, quase uma chácara, margeando a rodovia estadual. Era do Edgar, amigo de infância do meu marido. Ele e a esposa, Debora, sempre foram gentis. Gente que convida pro café e segura a criança dos outros sem pedir nada em troca.

Na lateral do terreno, havia uma casinha branca, quase toda de madeira, com telhado baixo e janelas pequenas, daquelas que mal deixam o vento entrar. Na frente, uma salinha improvisada: sofá gasto, uma TV de tubo, escrivaninha velha com papelada espalhada, uma geladeirinha barulhenta no canto. Atrás, a cozinha era quase simbólica. Um fogão de duas bocas encostado na parede, um armário com duas panelas e um pano estendido entre duas cadeiras, fazendo as vezes de cortina. Só o banheiro destoava: construído em alvenaria, revestido com azulejos brancos e frios, pia de louça nova, espelho bem iluminado e um difusor aromático que exalava lavanda. Sempre achei engraçado o contraste.

Assim que desci do carro, Debora me viu e o rosto dela se iluminou como quem encontra socorro. Trazia nos braços a bebê de oito meses, gordinha, bochechuda e inquieta. Nem disse “oi” — apenas colocou a pequena no meu colo e disse, meio sem fôlego:

“Fica com ela um pouquinho? Só um pouquinho, pelo amor de Deus.”

Fiquei. Claro que fiquei. Aquela menininha me adorava, e o sentimento era recíproco. Brincamos com as chaves, com o fecho da minha bolsa, com uma garrafinha vazia que virou microfone. Até troquei a fralda dela numa esteira de papel toalha improvisada no sofá da salinha. Debora correu de volta para a fila, onde dezenas esperavam os ingressos.

Foi então que ele apareceu.

Um rapaz, devia ter uns vinte e poucos anos. Cabelos escuros, boné virado pra trás, olhos que vasculhavam meu corpo com uma audácia que só cresce em grupo. Sozinho, talvez fosse apenas tímido. Mas ali, com amigos já dentro do festival, parecia inflado pela ausência de testemunhas.

“Você é daqui?”, perguntou.

“Sou”, respondi, seca.

“Ah, que sorte a minha… mulher bonita nesse fim de mundo é raro, né?”

Sorri amarelo. Ele não entendeu a dica.

“Vim com umas amigas. A gente ama a banda de hoje. Você vai ver?”

“Talvez. Ainda não sei.”

“Vai sim. Tá na cara. Só tá se fazendo de difícil.”

Afastei com os olhos. Fui me refugiar dentro da casinha. A bebê já cochilava no meu ombro. Sentei no sofá, liguei a TV. Nada passava, só aqueles canais religiosos de domingo. Fiquei ali, em silêncio, balançando levemente o corpinho da pequena no meu peito.

Depois de alguns minutos, fui até a porta. Ele ainda estava lá, encostado no batente, sorrindo.

“Desapareceu, hein?”

“Precisei trocar a fralda da neném.”

“Se quiser, posso ajudar…”

Fechei a porta sem responder.

O tempo foi passando. A bebê acordou, Debora voltou só pra buscá-la e saiu correndo de novo. O movimento diminuiu. As luzes do palco se acendiam ao longe. Consegui um carregador emprestado, mas meu celular já não ligava. Fiquei sozinha.

Pensei em ir embora a pé. Mas trinta quilômetros na estrada, à noite, sem bateria, com um homem me rondando? Nem pensar.

Encontrei Edgar atrás da estrutura de som.

“Me empresta a chave da casa? Vou ficar lá dentro, quietinha. Espero o pessoal me buscar.”

Ele não questionou. Apenas entregou o chaveiro.

Tranquei todas as portas. A da frente, a dos fundos, até a de vidro que separava a cozinha da sala. Liguei a TV de novo. Um filme dublado começava. Me deitei no sofá com uma almofada dura demais pra ser confortável. Apaguei.

Acordei com o som seco e cortante de vidro estilhaçado.

Levei alguns segundos para entender. O ar estava diferente. O silêncio anterior tinha virado ruído abafado. Me levantei e vi a porta de vidro arrebentada. Ele estava ali.

O mesmo rapaz.

Só que o olhar agora não era provocador. Era… faminto.

“Você se escondeu de mim”, disse, como se tivesse esse direito.

Tentei correr para a frente, mas ele foi mais rápido. Me agarrou pelos braços, me empurrou contra a parede. Tentou me imobilizar. Me contorci com tudo o que tinha. Acertei o joelho entre as pernas dele, e quando ele cambaleou, segurei seu pescoço com ambas as mãos. Troquei de posição, o joguei no sofá. Mas sabia — sabia com uma certeza gelada — que não duraria. Ele era mais forte. E eu, uma mulher sozinha numa casinha de madeira.

Corri para o banheiro. Tranquei a porta. Empurrei o armário da pia para travar. Tremia. O corpo inteiro vibrava com adrenalina.

Nada. Nada ali servia como arma.

Isqueiro. Desodorante.

A ideia surgiu num ímpeto: fogo.

Encharquei uma toalha, pendurei pela janelinha do banheiro e ateei fogo. Era o que dava pra fazer. Com sorte, alguém veria a fumaça. Com sorte, alguém passaria pela estrada.

Ouvi passos novamente. E uma voz. Não dele.

Era a Debora.

Meu coração parou.

“Olha só quem trouxe cobertores pra você”, ele dizia. A voz dela vinha abafada, como se tapasse sua boca com a mão.

Não tive escolha.

Levantei a tampa da caixa acoplada do vaso. Era pesada. O suficiente. Empurrei o armário com raiva e medo. Abri a porta.

A fumaça já invadia a sala. As chamas tinham alcançado as cortinas da cozinha.

“ABAIXA!”, gritei.

Debora se jogou no chão, e eu, com toda a força que me restava, desci a tampa de louça sobre a cabeça dele.

Tudo ficou escuro.

Acordei no hospital.

O quarto era silencioso. Frio. As enfermeiras passavam, mas evitavam contato. Perguntava por Debora, e elas apenas balançavam a cabeça — um “não” com peso de luto.

“Ela tava bem. Eu lembro. Eu a salvei.”

Mas ninguém dizia nada.

Fiquei ali dias, talvez semanas. Ninguém vinha me visitar. Nenhum policial. Nenhuma notícia. Só médicos simpáticos e enfermeiras com pena nos olhos.

Um senhor entrou. Rosto calmo, cabelo grisalho, mãos juntas à frente do corpo.

“Você a salvou”, ele disse.

“Então por que ninguém me conta onde ela está? Onde eu estou? Por que ninguém vem?”

Ele respirou fundo.

“Ela está com a família… Na terra.”

Minha garganta fechou.

“Você… não sobreviveu.”

A última noite do festival havia sido também a minha.