A casa era perfeita. Madeira de lei nas vigas expostas, escadaria central com acabamento em mogno polido, janelas amplas de vidro grosso por onde entrava a luz dourada das manhãs. Ali dentro, tudo cheirava a conforto — e a poder. Era o tipo de lar que não se comprava apenas com dinheiro. Era preciso prestígio. E Dr. Miguel Vasconcellos tinha de sobra.
Neurocirurgião respeitado, jovem, bonito, com um carisma frio de quem estava acostumado a ser o melhor — e sabia disso. Aos 36 anos, Miguel era uma celebridade discreta no meio médico. Reportagens, prêmios, convites para congressos internacionais. Não havia uma técnica em que ele não fosse referência, um bisturi que tremesse em suas mãos.
Amanda, sua esposa, tinha orgulho. E gratidão. A vida que levavam — e a filha que criavam juntos — eram frutos de anos de trabalho duro e uma rara sintonia conjugal. Cecília, de sete anos, era a luz da casa. Cabelos castanhos e volumosos, riso fácil, olhos curiosos. Uma criança que parecia ter saído de um sonho bom.
Até que tudo virou pesadelo.
Tudo começou com uma ligação. Era a mãe de Amanda. A voz, já envelhecida, estava trêmula:
— Teu pai… ele tem um nódulo no cérebro. Está crescendo. Precisamos do Miguel.
Era óbvio. Quem mais? Miguel era o único capaz de operar uma lesão tão delicada, infiltrada na base do crânio, onde poucos ousavam intervir. Amanda respirou fundo, com aquela confiança automática de quem sabe que tem o melhor cirurgião do país sentado na sua sala.
Mas Miguel hesitou.
Primeiro alegou falta de tempo. Depois, risco elevado. Mais tarde, disse que não tinha certeza se queria se envolver emocionalmente com o caso.
— É o meu pai, Miguel. O homem que sempre te tratou como filho.
Ele abaixou os olhos. Não disse nada.
As recusas se tornaram rotina. O tumor avançava. E Amanda começava a perceber que havia algo profundamente errado.
Foi quando Cecília adoeceu.
No começo, parecia uma gripe. Mas os sintomas não passavam. Febres inexplicáveis, dores de cabeça e no corpo, crises de enjoo, desmaios. Nenhum exame detectava nada. Médicos consultados em três estados não conseguiam chegar a um diagnóstico.
E então a casa começou a ruir. Literalmente.
Rachaduras nas paredes. Infiltrações súbitas. Um dia, uma viga inteira do telhado cedeu — e caiu a centímetros de Amanda, que por um triz não foi esmagada.
Naquela noite, no jantar, Miguel serviu o vinho em silêncio. Comeu poucas garfadas. Por fim, olhou para Amanda como se estivesse vendo-a pela última vez.
— Preciso te contar uma coisa. Um segredo que eu escondo desde antes de te conhecer. Mas já não posso guardar mais.
Ela não respondeu. Esperou.
E ele falou.
Era um garoto pobre do interior. Filho de pedreiro, criado entre ruínas. Sonhava ser médico, mas não tinha notas nem dinheiro. Até que um conhecido lhe falou sobre uma mulher — uma bruxa, diziam. Morava nos arredores de uma vila esquecida, cercada por árvores secas e cruzes antigas.
Miguel foi até lá. Contou o sonho. Ela ouviu, calada, e disse:
— Você vai ser o melhor. Mas o dom tem um preço.
O preço era simples. De tempos em tempos, ele precisaria negar uma cirurgia. Uma vida deveria ser entregue em troca do dom. Ele saberia quem era o escolhido. Veria uma marca — um brilho estranho, uma sensação visceral, como um selo invisível. Se se recusasse a cumprir sua parte, a vida ao redor desabaria. Tudo que ele conquistou ruiria, como uma casa podre por dentro.
— Já foram três, Amanda. Três pacientes que eu deixei morrer. Não era por mim. Era… parte do acordo.
Ela o encarou. A raiva em ebulição se misturava ao medo. E ao nojo.
— E agora é o meu pai. — sussurrou.
Miguel assentiu.
— Eu não quero deixar ele morrer. Mas já está acontecendo. A Cecília… a casa… Se eu desafiar o pacto, vou perder tudo. Talvez vocês também.
Amanda não chorou. Levantou-se devagar. E disse apenas:
— Você vai operar. E eu… eu vou atrás da mulher que fez isso.
Ele não tentou impedi-la.
Encontrar a bruxa foi como buscar algo que não queria ser achado. Amanda passou dias em pesquisas, madrugadas em fóruns obscuros, vasculhando arquivos, relatos, boatos. Até que, numa manhã úmida, seguiu uma trilha de terra batida em uma região esquecida do interior. A casa estava lá. Mesma descrição. Árvores mortas. Silêncio espesso.
A mulher a recebeu como se já a esperasse.
— Você é a esposa do médico.
Amanda assentiu.
— Quero quebrar o pacto.
— Não se quebra o que é feito em sangue e osso. Mas se transfere. — A mulher sorriu. — E você está disposta.
Não houve sacrifício. Não houve contrato. Apenas uma oração antiga, um círculo desenhado com ervas e cinza, e um único toque nos olhos de Amanda.
— Agora a marca aparecerá para você.
Ela voltou correndo ao hospital. Miguel já havia iniciado a cirurgia. O tumor estava localizado. Estável. Mas ele esperava. A mão parada no ar, bisturi suspenso.
Amanda entrou na sala com o coração acelerado. Fez um leve gesto com a cabeça. A autorização.
Miguel completou a operação com perfeição cirúrgica. Ao fim, o pai dela estava salvo.
Nos dias que se seguiram, Cecília voltou a sorrir. A casa foi consertada. O ar parecia mais leve. Miguel a abraçou, certo de que estavam livres.
Amanda sorriu.
— Está tudo desfeito, meu amor. Você não deve mais nada a ninguém. Agora pode salvar quem quiser.
Ele a beijou. Dormiu em paz.
Mas Amanda sabia.
Ela sabia que, um dia, uma marca brilhante surgiria em alguém. E ela teria que escolher entre entregar uma vida… ou pagar o preço do dom.
Agora, a dívida era dela.