Sempre fui uma pessoa racional. Contabilidade, afinal, exige exatidão — nada de espaços para mistérios ou ambiguidades. Por isso, foi com certo desconforto que ouvi meu chefe dizer, numa manhã qualquer no escritório, que estava na hora de me preparar para assumir seu lugar.

— Antes de mais nada — ele disse com a serenidade de quem anuncia um almoço de negócios —, preciso lhe mostrar uma coisa.

Confio nele. Sempre confiei. Entrei no Mercedes preto como quem entra em uma nova planilha de Excel, crente de que tudo poderia ser organizado, explicado, justificado. Ledo engano.

Na estrada, ele começou a falar. Aquelas palavras… como se lesse de um antigo manuscrito:

— Nem tudo é o que parece. Há forças neste mundo que não podem ser compreendidas, mas nem por isso deixam de existir.

Ri, nervosa. Pensava que talvez fosse uma metáfora, alguma filosofia de gestão.

Três horas de viagem depois, e estávamos no que parecia ser o fim do mundo: uma casa antiga, solitária, construída com madeira de demolição, de pé apenas pela vontade de algo que não se dobra ao tempo.

O portão rangia como se lamentasse nossa chegada. Contrastava grotescamente com o luxo do carro que nos trouxe. Entramos. Uma sala sem móveis, escura, iluminada por velas. Ao fundo, um corredor com muitas portas. Catorze, talvez.

Foi quando vi minha tia. Irmã da minha mãe. Nunca havia estado em sua casa, tampouco sabia que conhecia meu chefe. Sem dizer uma palavra, ela fechou a porta de entrada da casa, colocou um tapete no chão, se ajoelhou de costas pra ela, virada para dentro da casa e começou a rezar em uma língua que eu não conhecia. Um frio percorreu minha espinha.

Meu chefe segurou meu braço. Firme, mas gentil. Sua voz parecia veludo, ou fumaça.

— O que verá aqui hoje faz parte do que mantenho. Se aceitar me substituir, este também será seu dever.

Comecei a tremer. Ele continuou:

— Em cada quarto, há uma entidade que deve ser castigada semanalmente. São forças que precisam ser mantidas sob controle. Não podemos deixá-las sair.

Não tive como reagir. Congelada, segui seus passos.

No primeiro quarto, uma mulher de camisola branca, amarrada com lençóis numa cama de dossel. Ele usou um chicote de tiras com pedras nas pontas. Os gritos… não vinham de uma mulher. Eram guturais, desumanos. A camisola ficou vermelha. Meu estômago revirou.

No seguinte, uma serra elétrica. Um homem. Foi rápido. Frio. Sem hesitação.

Não lembro de todos os quartos. Acho que não quero lembrar.

Mas o último… o último não seguia o roteiro.

Meu chefe hesitou. A expressão dele era de medo. Medo real.

— Vá embora — ele disse. — Esse não deveria estar solto.

Eu não tinha nem entrado. A cama estava vazia.

Ele fechou a porta por dentro e me deixou no corredor. Gritou:

— Vá até sua tia. Pegue a chave. Vá embora.

O corredor parecia ter quilômetros agora. Encontrei minha tia parada, imóvel. Quando falei com ela, suas pupilas se dilataram, e algo dentro de mim gritou que aquela não era mais minha tia.

Ela me disse que a chave estava em uma das dezenas de gavetas do armário na sala. Comecei a abri-las, uma a uma, tremendo. Ela se aproximava. Algo nela estava errado. Horrivelmente errado.

Quando achei que não conseguiria mais fugir, meu chefe voltou. Atrás dele, o som de correntes. Ele prendeu minha tia — ou o que quer que fosse aquilo — e me olhou.

Seus olhos estavam completamente negros.

Corri. Saí da casa. Entrei no carro. Fugi. O que aconteceu depois é um borrão.

Hoje, estou procurando emprego.


No currículo, deixei de fora a parte sobre monstros e corredores sem fim.

Às vezes, acordo com o cheiro de vela derretida no travesseiro.
Com as mãos fechadas, como se ainda buscassem uma chave que nunca encontrei.

Me disseram que eu pedi demissão após uma briga com meu chefe.
Eu mesma repito essa história quando perguntam.
Mas há noites em que sonho com portas — e, nelas, algo bate do outro lado.
Algo que sabe meu nome.
Algo que espera.

Talvez seja só cansaço.
Talvez, apenas o eco de um lugar que nunca existiu.

Ou talvez eu tenha aceitado.

E só esteja esquecendo devagar.