Na casa antiga da vó Clarice, o cheiro de alho refogado se misturava com o doce da goiabada e o perfume de manjericão fresco. Era dia de festival. Não um festival qualquer, mas o Festival de Sabores da Família Rodrigues, tradição inventada ali mesmo, no coração de um sonho.
Toda a família estava reunida — tias, primos, sobrinhos e agregados — cada um trazendo sua contribuição para um cardápio pré-estabelecido e cuidadosamente votado meses antes. A cozinha, o quintal, até a garagem: tudo virou extensão de um bufê improvisado.
Mas o mais impressionante nem era a comida. Era o júri.
No centro da sala, numa cadeira de espaldar alto, estava o velho Armando. O avô. Já falecido há anos, mas, naquele dia, perfeitamente presente. Com sua camisa de botão sempre aberta demais, as sobrancelhas unidas num vinco crítico, ele mastigava em silêncio, saboreando cada prato com o ceticismo de quem já provou o mundo inteiro — e achou quase tudo “mais ou menos”.
A regra era clara: todos comiam de todos, mas apenas Armando decidia o destino de cada receita. Não sabia quem tinha feito o quê. Quando dava de ombros e resmungava um “até que dá pra comer”, era como receber uma estrela Michelin. Quando franzia o nariz, o prato era eliminado — e o cozinheiro também. Simbolicamente, claro. A pessoa saía da competição e ia ajudar a lavar a louça.
Conforme os pratos iam desaparecendo, a tensão crescia. O festival virava combate. Restavam poucos. Os olhos dos competidores já se evitavam. Tios calados. Primos estratégicos. A guerra de sabores estava declarada.
Foi então que começaram as artimanhas.
Sem poder se identificar diretamente, os finalistas começaram a inserir pequenos sinais nos pratos — ingredientes incomuns, pistas para o velho Armando reconhecer a autoria. Uma pimenta malagueta escondida num brigadeiro. Um toque de alecrim no arroz-doce. Um fio de cachaça no vinagrete. Era o jeito que encontraram de falar com ele sem dizer uma palavra. Uma tentativa de diálogo gustativo com o passado.
Mas Armando não era bobo. E era teimoso como uma mula.
— Estão tentando me enganar — disse, após provar um bolinho de bacalhau com um inesperado recheio de goiabada. — Mas isso aqui… até que dá pra comer.
No fim, só sobraram dois pratos. Um doce de abóbora com gorgonzola e um nhoque de banana-da-terra. Todos aguardavam a sentença.
Armando mastigou em silêncio. Fechou os olhos. Quando os abriu, não olhava mais para o prato. Olhava para cada rosto ao redor da mesa. E então, pela primeira vez, sorriu. Um sorriso rarefeito, mas honesto.
— Já pode acabar, Clarice. Esse povo aprendeu a cozinhar.
E desapareceu, como se nunca tivesse estado ali. Ou como se sempre estivesse.