A chuva castigava as ruas com força, tornando difícil enxergar além do vidro embaçado do ônibus. Eu e minha irmã entramos encharcadas, tremendo de frio, e nos apertamos entre os passageiros. Era um tempo duro, logo após a guerra, e qualquer saída de casa parecia um risco. Foi nesse cenário que um rapaz tentou arrancar minha bolsa. Um puxão seco, minhas mãos reagindo no instinto de segurá-la, mas o ladrão era mais forte.

Antes que eu perdesse o que levava, uma senhora distinta interveio. Estava sentada próxima, cantarolando cânticos de louvor, e sem esforço aparente intimidou o assaltante, que desceu do ônibus sem olhar para trás. Agradeci com um misto de alívio e fascínio. Ela tinha um jeito acolhedor, quase hipnotizante. Quando soube que estávamos a caminho de um compromisso importante, prontificou-se a nos ajudar. Sua casa era próxima, e nos ofereceu roupas secas. Eu e minha irmã, ainda tremendo de frio, aceitamos.

A casa era modesta, mas impecável. O aroma de limpeza pairava no ar e o marido da senhora, um senhor simpático, nos recebeu com um sorriso sincero. Troquei de roupa e senti-me confortável, quase segura. Fomos para a cozinha, onde ela preparava uma massa e nos serviu chá quente. Já estávamos prontas para partir quando o telefone tocou.

A voz do outro lado da linha era familiar: minha tia. Seu tom carregava um peso que conhecíamos bem. Havia perdido o filho na guerra e ainda vivia sob a sombra do luto. Mas foi a resposta da senhora que fez o sangue gelar em minhas veias.

“Que alegria, amiga! Será um prazer ver novamente um militar bater à sua porta com medalha.”

Meu coração acelerou. Não era um desejo de glória, mas uma sentença de dor. Um sussurro cruel camuflado sob um sorriso amável. Meus olhos buscaram minha irmã e a encontrei adormecida na cadeira. Um torpor começou a tomar conta de mim também.

A senhora se virou para mim com um olhar curioso. “Então, ficarão para o almoço?”

Neguei, tentando esconder o pavor, mas ela percebeu. Seu rosto mudou. “Sabe, há anos tenho controlado meu apetite por respeito ao meu bom marido… Mas hoje acho que não conseguirei repetir.”

Engoli em seco. “A senhora foi cruel com minha tia.”

“E o que você faria no lugar dela?” perguntou, inclinando a cabeça. “Faria você engolir essas palavras.”

Um sorriso fino brotou nos lábios dela. “Quem vai engolir algo será você.” Olhou para a massa que preparava. “Formigas carnívoras devorarão você de dentro para fora.”

O marido dela entrou na cozinha. Num instante, a mulher voltou a ser a anfitriã cordial. Ele provou a comida sem suspeitar de nada. Minha esperança morreu ali.

Juntei forças para lutar contra a sonolência. Se não escapasse, minha irmã e eu não sairíamos vivas. Vi um copo de vidro na mesa e considerei quebrá-lo para fazê-la engolir seus próprios horrores. Mas ela leu meus pensamentos.

“Se fizer isso, me faz dois favores: me manda de volta para o inferno e se coloca no meu lugar.”

Com um último esforço, tranquei-a na despensa e fugi para a sala, onde o marido dela estava. Eu não sabia se podia confiar nele, mas não tinha escolha. Não mencionei a maldade da esposa, apenas pedi ajuda, dizendo que minha irmã dormira de cansaço. Ele nos levou ao ônibus. Estávamos livres.

Os anos passaram, mas os traumas ficaram. Medo de ônibus, desconfiança das pessoas, pesadelos recorrentes com uma velha vomitando cacos de vidro.

Até o dia em que a reencontrei.

O parque estava cheio naquele dia ensolarado. Caminhava com meu marido quando vi a senhora. Meu coração disparou. Ela sorriu e se aproximou como se fôssemos velhas amigas. Meu marido não sabia da história. Ela me agradeceu, insinuando que, por minha causa, conseguiu manter-se no caminho certo. O marido dela havia morrido e a tristeza a consumia.

Convidou-nos para um chá. Como seria numa cafeteria, onde eu teria controle do que bebia, aceitei. Pedi um suco. Meu marido foi buscar os pedidos enquanto conversávamos.

“Não tentou matar mais nenhuma garotinha?” perguntei, sem rodeios.

Ela segurou minha mão. “Sou verdadeiramente grata por você ter fugido. Pude controlar meus instintos. Meu marido morreu em paz. Não queria que ele fosse para o inferno.”

Por um momento, acreditei.

Então, um grupo de garotos na mesa ao lado zombou de nós. Ela se enfureceu e levantou para repreendê-los. Um dos meninos chutou água de uma poça em seu vestido e saiu correndo. Ela tremeu, seus olhos perderam a suavidade.

Ajudei-a a tirar a camada molhada do vestido. Ela foi ao banheiro se lavar. Meu marido voltou e contei-lhe tudo. Ele não acreditou na mudança dela e suspeitou da demora. Fomos atrás.

Ela não estava mais vestida como antes. Agora usava calça social, colete e chapéu masculino. Seus olhos, porém, eram os mesmos. Quando percebeu que a reconhecemos, sua pele começou a mudar. As pernas se alongaram, os cabelos caíram. Seu rosto queimado e retorcido surgiu por baixo da máscara humana.

Ela correu atrás do garoto. Ele não teve chance. Com uma agilidade impossível, escalou uma árvore e segurou o menino nos ombros. Olhou para nós e sorriu.

“Dessa refeição vocês não me privam.”

Então, sugou a criança como se fosse um suco e desapareceu.