Viajamos para uma cidade litorânea para comemorar os 16 anos do nosso filho, Bento. Somos uma família muito unida, e ele — sociável por natureza — sempre puxa assunto com todo mundo. Essa era a ideia: celebrar, descansar e curtir a praia. Não sabíamos que o inesperado nos esperava num churrasco.

Ficamos num hotel charmoso, de frente para o mar, e logo fizemos amizade com outro casal: Renato e Adriana, que estavam acompanhados do filho, Lorenzo — da mesma idade do Bento. Em pouco tempo, os meninos já estavam rindo e trocando histórias como se se conhecessem há anos. Renato contou que trabalhava em uma construtora e estava ali a negócios. A empresa havia comprado uma casa em um grande terreno, onde pretendia erguer um prédio. A casa, disse ele, seria demolida em breve — e nos convidou para um churrasco de “despedida”.

Aceitamos.

Quando chegamos, fiquei impressionada. Uma casa de dois andares, com um muro alto na lateral e um portão de grade branca em estilo neoclássico. Entramos no terreno de carro e, pela porta dos fundos, demos direto numa cozinha toda branca, com eletrodomésticos cromados e impecavelmente limpa. Da cozinha era possível ver o quintal: um pátio gigantesco, que tomava quase uma quadra inteira, com uma piscina de raia semiolímpica e árvores frutíferas por todos os lados. No fundo, uma torre alta — devia ter uns três andares. Me perguntei para que servia. Um observatório talvez?

Da cozinha, enxergava só um pedaço da sala. A decoração era minimalista, sem objetos pessoais, mas alguns móveis chamavam atenção — como um sofá de couro imenso, sob o pé-direito alto. Fiquei esperando o tour pelos outros cômodos, mas Renato não se pronunciou. Me peguei pensando no destino daqueles móveis, com a demolição se aproximando. Que desperdício. Lamentei não morar perto só para disputar uma doação.

Renato resolveu o mistério: a torre abrigava uma churrasqueira. Na minha cabeça, não fazia o menor sentido uma churrasqueira tão longe da cozinha — e nem parecia ter espaço para mesas lá emcima. De qualquer forma, eu e Adriana não demonstramos o menor interesse em subir as escadas. Enquanto os homens subiram para conhecer o lugar, ficamos na cozinha preparando os acompanhamentos.

Quando o churrasco ficou pronto, sentamos em roda no quintal e almoçamos em formato de petisco, sem pratos. Mais tarde, curtimos a piscina. Perguntei casualmente se iam aterrar tudo aquilo. Renato respondeu que sim. Entendo que a modernidade sempre chegue, mas enterrar aquela piscina e demolir a casa me parecia enterrar a história de uma ou várias famílias que já viveram ali. Quantas pessoas já não se divertiram naquela mesma piscina?

Foi então que a leveza deu lugar ao conflito.

Enquanto preparávamos uma sobremesa, vi pela janela um carro preto, sedã, entrando pelo portão. Estranhei. Perguntei a Adriana se era alguém da construtora. Ela respondeu que não.

Do carro desceu um casal. Com eles, uma criança de uns dez anos, uma moça de uniforme — aparentemente a babá — com outra criança menor no colo. Fiquei consternada.

O homem, ao ver a luz da cozinha acesa, colocou as mãos na cintura e gritou:

— Quem está aí? Vou chamar a polícia!

Assustada, fui atrás de Renato, que ainda estava na torre. Gritei, mas ele não respondeu. Que ideia, fazer uma churrasqueira tão longe de todo mundo…

Fui até o homem:

— Desculpe, senhor, como posso ajudá-lo?

Ele estava transtornado.

— O que estão fazendo na minha casa? Eu aluguei por temporada! Já era pra terem saído semana passada!

Minha cabeça girava. Como seria possível? Quem estava mentindo?

— Meu Deus… senhor, mil desculpas. Um casal de amigos do hotel nos trouxe. Disseram que a casa foi comprada pela construtora onde ele trabalha…

— Que absurdo! Moro aqui há anos. Nunca vendi nada. Por favor, saiam!

— Sem dúvida. Vou chamar minha família e iremos embora agora.

Não me importava quem estava certo. Eu só queria sair dali. Coloquei o carro pra fora do pátio e voltei para avisar meu marido e procurar Bento. Mas o terreno era grande, cheio de árvores, confuso.

Quando encontrei meu filho, nem consegui explicar. Só peguei no braço dele e pedi que viesse comigo — urgente. Ele não entendeu nada, mas viu no meu olhar que era sério.

Voltamos para a frente da casa e vimos meu marido sentado, conversando com Renato e o suposto dono da casa. O dono da casa disse ter resolvido o mal entendido. Como assim resolveu, uma história não bate com a outra — não tem como ser mal entendido, apenas má fé — mas o que estavam aprontando.

Meu marido pediu para ficarmos só mais um pouco.

Mas algo no olhar dele me gelou. Era como se não tivessemos escolha.

Voltei para dentro para arrumar nossas coisas. Os adolescentes e os homens ficaram no quintal. Na cozinha, o “dono” apareceu. Sorrindo, com voz macia, se aproximou pelas minhas costas — perto demais.

Sussurrou no meu ouvido:

— Fiquem mais um pouco. Vai ser melhor pra vocês.

Me esquivei. A vontade era virar um soco na cara dele. Continuei guardando tudo. Foi quando a esposa dele apareceu descendo do segundo piso. Um pequeno alívio.

Voltei ao jardim e reuni a família para irmos embora, mas o portão da garagem estava trancado. Entrei quase correndo para tentar a porta da sala — também trancada. Pedi, por favor, que nos deixassem sair.

O homem sorriu e disse:

— Quero só contar como foi a nossa viagem. Fiquem para o jantar.

As crianças e a babá surgiram. Ela e a criança menor estavam sentadas num banco na lateral da casa de cabeça baixa e ninguém ofereceu comida para elas. Peguei o que eu mesma havia trazido e dei a elas. A babá agradeceu em silêncio, olhos baixos. Um calafrio me percorreu.

Com um sorriso pálido, disse ao meu marido:

— Estamos aqui há tempo demais. Vamos pra casa?

Foi quando o homem viu a babá comendo e mudou de tom:

— Como assim elas estão comendo junto conosco? Que absurdo!

— Eu dei — respondi. — Trouxe de casa. Achei que gostariam.

— Aí você estraga a história! Essas aí são as esganadas da minha história!

Nesse momento, um barulho alto interrompeu tudo.

Lorenzo — o filho do casal — despencou da torre onde ficava a churrasqueira.

Corremos.

Gritei que ia chamar a polícia. O homem gritou de volta:

— Nem pensar!

Olhei ao redor. Todos estavam ali. Menos a esposa dele.

Ela desceu lentamente da torre.

E, no olhar da babá, eu entendi: aquilo não era novidade.

O pânico tomou conta de mim. Peguei a chave do carro, coloquei na mão do meu filho e disse:

— Vai. Acha uma saída. Salva o endereço. Pede ajuda. Vai embora e nos salva.

Ele hesitou. Fui firme.

E então, eu acordei.